Hoje iremos discutir a teoria ergodica do fluxo homogêneo no espaço de lattices conforme prometido no fim do post anterior. Para isso, vamos começar com algumas definições. Lembramos que na ultima seção do post anterior identificamos o grupo especial afim com o seguinte subgrupo de
o qual é o produto semi-direto onde
.
Além disso, identificamos o espaço de lattices com e definimos
(1) .
Finalmente, nos concluimos que todas essas identificações reduziam nossa tarefa na prova do seguinte fato (enunciado como teorema 3 no post anterior):
Teorema 0. Para toda vale
.
Como ja antecipamos, este resultado sera obtido de um teorema mais geral sobre equidistribuição de horociclos não-lineares. Para enunciar adequadamente este teorema, vamos introduzir a definição:
Definição 1. Uma seção horociclica (ou horociclo) é uma aplicação da forma
(2)
tal que
para algum inteiro e algum elemento .
Observação 1. Dado um horociclo existe um inteiro minimal tal que para algum . Este inteiro é o periodo de em .
Observação 2. O nome horociclo tem a seguinte motivação: a projeção natural do espaço de lattices para o espaço de redes envia uma seção horociclica de sobre um horociclo (usual) ao redor de um “cusp” de .
Definição 2. Um horociclo é dito linear (sobre os racionais) sempre que para todo tivermos
.
Caso contrario, o horociclo é dito não-linear.
Observação 3. O comportamento de não influencia na nossa definição de linearidade.
Observação 4. Um horociclo real-analitico é linear se e so se para algum ja que toda função real-analitica não-constante possui um conjunto discreto de zeros.
Comparando as equações (1), (2) e utilizando a observação 4, vemos que
forma um horociclo não-linear com periodo e . Portanto, o teorema 0 acima segue imediatamente do seguinte fato mais geral:
Teorema 1 (Equidistribuição de horociclos). Seja um horociclo não-linear de periodo . Então, os circulos ficam equidistribuidos em , i.e.,
.
Observação 5. Os ingredientes importantes neste resultado são: a “parte linear” do horociclo ser uma matriz unipotente e o horociclo é não-linear. Com efeito, na prova do teorema 1 iremos usar o fato do horociclo ter parte linear unipotente para aplicar o teorema de Ratner de modo a reduzir a lei de distribuição do horociclo para uma quantidade enumeravel de candidatos (dentre eles ). Em seguida usamos a não-linearidade para excluir todas as outras possibilidades.
Observação 6. A hipotese do horociclo ser não-linear é essencial: quando o horociclo é linear, o resultado do teorema 1 é falso! Voltaremos nesse ponto apos vermos a prova do teorema.
Com isso, dedicaremos o resto deste post para a demonstração do teorema 1. Para isso, vamos utilizar o seguinte esquema:
- na proxima seção, revisaremos alguns fatos basicos sobre medidas invariantes e veremos algumas propriedades da medida associada a lei de distribuição de ;
- em seguida, usaremos o teorema de Ratner para mostrar que temos apenas uma quantidade enumeravel de possibilidades para a lei de distribuição ;
- finalmente, na ultima seção utilizaremos a não-linearidade do horociclo para provar que a unica possibilidade para a lei de distribuição é , o que terminara a prova do teorema 1.
Agora passamos para a formalização desse programa.
–A lei de distribuição de um ”loop”–
Dado um ”loop” , denotamos por a probabilidade natural suportada na imagem de :
para .
Além disso, dado um horociclo não-linear de periodo , denotamos por , de modo que o teorema 1 é equivalente ao seguinte resultado:
Teorema 2 (Equidistribuição de horociclos versão 2). Para todo horociclo não-linear vale
quando .
Como de costume, aqui a convergência ocorre na topologia fraca-*. Pelo teorema de Banach-Alaoglu, sabemos que possui uma subsequência convergente para uma medida . Em particular, nossa tarefa consiste em mostrar que para tais subsequências sempre temos .
Para isso, consideramos a aplicação do espaço de lattices para o espaço de redes a qual associa para cada elemento a sua parte linear , i.e.,
.
Observe que a projeção da medida de Haar de por é a me- dida de Haar de . Por isso, como um trabalho preliminar na direção de provar que , vamos verificar que a projeção de por esta correta:
Proposição 1. Temos que .
Prova. A imagem de é um horociclo (no sentido usual) do espaço . Por outro lado, envia as orbitas do “fluxo de Teichmuller” (as quais são geodesicas) de em geodesicas de e envia a medida na medida de Haar de . Finalmente, um argumento simples mostra que o fluxo geodesico de puxa para longe das cuspides de de maneira que fica equidistribuida (para mais detalhes veja o theorem 2.4 de Elkies e McMullen). Juntando esses fatos, segue que
.
Isto termina a prova.
Observação 7. Uma consequência direta da proposição 1 é que é uma probabilidade em , i.e., . Em particular, a massa das probabilidades é conservada na passagem ao limite. Essa é uma observação não-trivial porque o espaço é não-compacto!
Como veremos mais tarde, para entrarmos no contexto do teorema de Ratner, precisamos saber que é invariante por um subgrupo unipotente de . Com esse intuito, introduzimos o grupo
.
Note que este subgrupo unipotente aparece naturalmente em vista da formula sempre que é um horociclo. O resultado preparatorio para ficarmos no contexto de Ratner é o seguinte:
Proposição 2. A probabilidade é -invariante.
Prova. Fixamos . Consideramos e onde é um horociclo. Temos que
.
Para comparar adequadamente e , fazemos uma mudança de variaveis para fazer com que as partes lineares fiquem iguais. Mais precisamente, definimos e consideramos
.
Lembrando que , segue que
(3) .
Por outro lado, temos que , de modo que a distância entre e é dada pela distância entre os vetores obtidos da terceira coluna dessas matrizes:
Em seguida, usamos o fato de ser Lipschitz, ser limitado e para obter que
e
.
Portanto, vemos que quando . Em particular, segue que . Juntando isso com (3), obtemos
o que encerra a demonstração.
Uma vez que ja temos a invariância de pelo subgrupo unipotente , passaremos a discutir o teorema de Ratner.
–Teorema de Ratner e a classificação de –
O teorema de Ratner pode ser enunciado assim:
Teorema de Ratner. Sejam um subgrupo discreto de um grupo de Lie conexo e um subgrupo unipotente. Seja uma probabilidade ergodica -invariante em e denote por o maior subgrupo de deixando invariante. Então, existe tal que . Além disso, é a medida de Haar de e o suporte de é (de modo que é fechado em ).
A importância do teorema de Ratner para o contexto do teorema de Elkies e McMullen fica evidente: sendo invariante pelo subgrupo unipotente , podemos classificar listando todos os subgrupos fechados de ja que o teorema de Ratner diz que deve estar suportada na orbita de um tal subgrupo.
Logicamente o teorema de Ratner tem uma bela historia incluindo varias aplicações em ramos diversos da Matematica. Por isso, ficaria impossivel fazer jus a relevância desse teorema numa discussão breve, de modo que recomendamos o leitor interessado numa exposição profunda do assunto (incluindo algumas ideias da prova em casos particulares, motivação heuristica para a validade do enunciado acima e algumas aplicações) os posts publicados no blog do prof. Terence Tao (veja aqui um link para estes posts).
Em todo caso, nos iremos utilizar o teorema de Ratner do seguinte jeito. Denotando por uma fibra de , observamos que é um toro complexo . Para cada inteiro definimos os pontos de ordem com respeito a estru- tura de grupo de e denotamos o subfibrado de com fibras .
Definição 3. é o conjunto de pontos de torção de .
Em seguida introduzimos o subgrupo de translações horizontais, i.e., translações por vetores da forma e o conjunto de translações por vetores da forma e .
O objetivo dessa seção é aplicar o teorema de Ratner para mostrar o seguinte resultado:
Teorema 4 (Classificação de ). Temos que ou para algum .
Infelizmente o teorema 4 não é uma consequência imediata do teorema de Ratner porque não sabemos que é ergodica. Para contornar essa situação, aplicamos o teorema de desintegração ergodica para escrever como uma combinação convexa (”unica”) de medidas ergodicas -invariantes:
.
Observação 8. Usualmente o teorema de decomposição ergodica é enunciado em espaços compactos. No caso de (um espaço não-compacto), aplicamos esse teorema para a compactificação com um ponto e restringimos para .
Em seguida, para cada probabilidade ergodica -invariante em definimos
,
ou seja, é o maior subgrupo de deixando invariante. Observe que é fechado e .
Proposição 3. Para quase toda na decomposição ergodica de , temos
.
Prova. Da proposição 1 sabemos que . Como a ação de em é ergodica (porque esta ação é o fluxo horociclico em ), segue que para quase toda .
Por outro lado, pelo teorema de Ratner sabemos que esta suportada em uma orbita . Logo,
.
Como ja vimos que , obtemos
.
Portanto, . Isso termina a prova.
Agora nos relembramos a seguinte proposição sobre ações de :
Proposição 4. Toda ação afim de em possui pontos fixos.
Prova. Pelo truque unitario de Weyl, esta ação pode ser estendida para uma ação de em . Por outro lado, um ponto fixo para o grupo compacto pode ser construido facilmente (p.ex., tomando a media). Como , o ponto é fixado também pela ação de e, a fortiori, pela ação de . Logo, a parte real de é o ponto fixo de em desejado.
Proposição 5. Se é um subgrupo com , então ou é conjugado a .
Prova. Como , o nucleo da aplicação é um subgrupo -invariante de de modo que temos duas possibilidades:
- : nesse caso, ;
- : nesse caso, temos uma ação afim de em , a qual deve possuir um ponto fixo pela proposição 4; conjugando com um elemento adequado de , podemos assumir que este ponto fixo é a origem e .
Isto termina a demonstração.
Corolario 1. ou para alguma translação horizontal .
Prova. Como é -invariante sabemos que . Além disso, pela proposição 3 temos que . Logo, usando a proposição 5, segue que ou . Isso conclui a demonstração.
Proposição 6. ou para algum inteiro e .
Prova. Do corolario anterior temos . No primeiro caso vemos que pela -invariância de . No segundo caso, é uma -orbita fechada em . Como tais orbitas sempre estão contidas em para algum , isso encerra a demonstração.
Neste ponto, podemos finalizar esta seção dando a demonstração do teorema 4:
Prova do teorema 4. Escremos a decomposição ergodica de como . Pela proposição 6, quase toda componente ergodica de satisfaz: ou para algum . Portanto, podemos escrever da seguinte forma:
,
onde e . Em particular, se então para algum , donde . Isso termina a prova do teorema.
Tendo em vista a classificação de fornecida pelo teorema 4, vemos que o teorema 2 de equidistribuição de horociclos não-lineares segue ao mostrarmos que não enxerga os pontos de torção de . Esse sera o conteudo da proxima seção.
–Não-linearidade e pontos de torção–
O teorema principal dessa seção é
Teorema 5. Dados um horociclo não-linear e um ponto de acumulação das medidas (quando ) temos
para todo .
Prova. Dados e , defina
e
.
Afirmamos que
(4) .
Para computar sera conveniente passar para o recobrimento universal de . Começamos por notar que é coberto pela -orbita de onde
.
Em particular os pontos de na mesma fibra de são
.
Tomando a métrica Euclideana na terceira coluna das matrizes acima, vemos que onde
.
Em particular, onde
e
.
Neste ponto vamos usar a não-linearidade de para obter que o conjunto de com tem medida zero, de modo que, para cada fixado, temos
(5) .
Por outro lado, utilizamos o fato de ser Lipschitz para estimar quando é grande: mais precisamente, sempre que , o conjunto é a pré-imagem de um intervalo de tamanho por uma aplicação com derivada da ordem de . Logo,
(6) para todo .
Além disso, notamos que
(7) quando
e
( 8 ) quando .
Finalmente, observamos que
(9) e para grande.
Com estes fatos em mãos, podemos estimar assim: por (7) e ( 8 ) segue que
(10) .
Agora dividimos a soma do lado direito em duas partes:
Em seguida, notamos que a primeira soma é (porque (9) diz que e ) e a segunda soma ocorre sobre um conjunto finito de indices de maneira que (5) diz que esta soma tende a zero (quando cresce). Portanto, juntando estas duas estimativas com (10) vemos que quando é grande vale
,
o que prova a estimativa (4) desejada.
Finalmente, lembramos que , de modo que a estimativa (4) implica para todo . Fazendo e depois , segue que , o que finaliza a prova do teorema.
Com o teorema 5 ja provado, a tarefa de concluir a demonstração do teorema 2 (ou equivalentemente do teorema 1) fica facil. Com efeito esse é o conteudo da (curta) seção final abaixo.
–Fim da prova do teorema 2–
Dado um horociclo não-linear, consideramos um ponto de acu- mulação qualquer de quando . Pelo teorema 5, da massa zero para as translações horizontais dos pontos de torção de . Logo, o teorema 4 (de classificação) implica que . Em outras palavras, temos que é o unico ponto de acumulação da sequência . Isto mostra que
o que encerra a prova do teorema 2.
Com isso, nossa apresentação da prova do teorema de Elkies e McMullen chega ao fim! Para fechar este post, fazemos a seguinte observação:
Observação 9. O teorema 2 de equidistribuição é optimal, i.e., ele nunca vale quando é linear: se para um conjunto de medida positiva de então de modo que não pode convergir para .